terça-feira, 27 de agosto de 2013

Da infinita intransitividade do verbo AMAR:

Aconteceu em uma aula de dança. O professor pediu ao o aluno que repetisse a sequência que este acabara de fazer. Com um adendo: que colocasse em sua movimentação a intenção de uma carta de amor, uma declaração de amor ao mundo.
O aluno assim o fez, a seu tempo, o olhar atento. O professor:
- Ok. E o que você colocou dessa vez, o que você mudou, para fazer disso amor?
- Fui generoso.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Guardar decor: no coração. Bem guardado, por trás de todo o músculo, de todas as válvulas... Até que de sopetão vem à tona, por alguma razão que faz remexer tudo lá dentro e tira o pó daquilo que nem se lembrava existir.

É mentira. Tem coisa que não se esquece. Que se acomoda no fundo do peito e fica lá, aconchegada; um pesinho que vira contrapeso para tantas outras coisas, que na correria do dia-a-dia acaba só estando por ali, sem ter de fato presença. Fica num canto, fazendo parte do ser. Mas eis que o vento bate em cheio naquele dente-de-leão: ele, de tímido, passa a pura vivacidade. E se despedaça, exibindo o óbvio a cada pluma.
De um lado, o alívio leve das plumas que vão; do outro, o miolo seco e feio que fica. A planta exposta, em diagnóstico. O caule, o sussurro do vento, as plumas indo embora pra bem longe. Aquele mato ali de canto, que  em um instante transparece e desfila toda a sua essência, ausência.

Depois do turbilhão, tudo volta a ser como era: o peito bate no mesmo ritmo, o peso vai se acomodando num pequeno espaço... Como a planta que morre e retorna à terra para voltar a ser planta - ou ao menos possibilidade - guardando-se... decor.

quarta-feira, 28 de março de 2012

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Afastar, trazer para si: deslocamento. Mais do que um jogo, a sedução é  dança – não se quer ganhar ou perder, mas acompanhar o ritmo do canto até que já se esteja envolvido a ponto de ninguém mais saber se a música vem da sereia ou do navegante, uma vez que seus pés, pernas, mãos, braços e olhos já tenham se confundido num só.
Para que haja um movimento contínuo, harmônico, é preciso, entretanto, que um recue quando o outro avança e que depois de algum tempo estando um muito próximo ao outro, ambos se afastem mesmo que apenas por um momento para em seguida se juntarem novamente. Para isso, é necessário prever qual será o próximo movimento de seu parceiro –  e eis a condução. Só se é conduzido, porém, quando um deixa se levar pelo outro, entregando-se aos seus braços e ao mesmo tempo mantendo o corpo firme para não tropeçar e desmoronar ao ser pego de surpresa, estando sempre atento ao menor sinal de seu par para mudar de direção ou trocar de passo.
Se os dois envolvidos em tal dança se misturam em um, como se pode dizer quem conduz quem? Pois não se pode. Ambos se deixam ser levados e enrijecem, ora um ora outro e acontece também de os dois terem a mesma reação, tropeçando juntos ou criando com perfeição um novo passo. Mas o que mais assusta é, por distração ou má interpretação, ser pego de surpresa e desmoronar. Errar, cair, sair do tempo – é  o que se teme.



(em: Uma Aprendizagem: Leitura da obra de Clarice Lispector. Monografia apresentada ao Colégio São Domingos como requisito parcial para aprovação na disciplina de metodologia de pesquisa. 2009)

terça-feira, 1 de março de 2011

Criança tonta! Que besteira achar que de um tombo feio daqueles se pode simplesmente levantar como quem ainda tem um longo caminho pela frente, mesmo sem saber pra onde vai, erguer a bicicleta, limpar o sangue com as mangas da camisa e seguir viagem.
        O vento nos cabelos, as pernas pedalando em um ritimo só delas... Quem vê pensa em um sonho, vislumbre de lembrança guardada não se sabe bem de onde, de quando, sem porquê. Parece essas coisas que a gente deseja tanto sem nem perceber ou que sente muita falta sem ter conhecido. Coisa que a gente viveu de verdade mesmo se foi só faz-de-conta.
        Uma vida outra que é um pouco nossa  por razão nenhuma; o sol se pondo todo rosa, a roupa um pouco suja de terra, a grama em volta, cheiro de mato depois da chuva... Felicidade sem dono que se perdeu por algum lugar dentro do mundo, dentro do peito, e por vezes esbarra ligeira na nossa cara, fazendo pensar que foi quase sem querer tudo o que se passou.
        Tipo de coisa tão fácil que chega a ser difícil, tão nossa e que todo mundo tem. Um lugar que a gente volta sem às vezes nunca ter ido, uma música que se escuta por acaso e nos pega sempre despreparados, vulneráveis pela surpresa que nós mesmos nos fazemos de repente. 
        E depois se abana a cabeça e diz: criança tonta! Não sabe que se andar por aí de bicicleta pode se perder, pode cair. Que se cair machuca e se machuca tem que voltar pra casa e lavar com água e sabão, que ferida infecciona, que o sangue escorre, mancha a roupa e não sai nunca mais, nem com toda a lavagem do mundo. 
        Que bobagem! Continuava andando e nem ligava para a dor das feridas. Não fazia nem curativo, andava com elas expostas pra quem quisesse ver, sem preocupação, sem achar feio... O machucado para fora, o vento nos cabelos, um brilho nos olhos e um sorriso por dentro.

SINALEIRO

A cabeça queimava, mas os pés sujos e calejados provavam que o asfalto era mais quente que o sol. Sujeira e pele eram uma só, camada por trás da qual se escondia muito cansaço para um amontoado de ossos miúdos. No topo, cachos que há muito já haviam virado esponja e um par apagado de olhos verdes. O corpo moreno, não se sabe se de cor, de sol ou de imundice – não importa – o corpo moreno.
            Um pé sempre à frente do outro, uns trapos por cima de tudo, por vezes um pão duro como as palmas das mãos por vezes um gole de pinga no frio pra esquentar a garganta ou a alma secas, com sorte algum troco que aparecia por ali, mas um pé tinha que estar sempre adiante do outro.
            Meio-dia, calor, fome, calor, sede. Na cidade, só cinza, cinza, cinza, por mais que o sol doesse de vermelho. O mais perto do azul era o verde dos olhos ou dos faróis. Sabia que não podia cair, até mesmo porque não tinha nem onde, e aí alguém teria que dar um jeito. Não era de dar trabalho. Nem nome tinha, ninguém chamava e também ele não costumava chamar ninguém, era alguma coisa como Zé ou Moleque ou Fulano, tanto faz. Ele mesmo aprendera a ser quieto, não conhecia nem lágrima nem cuspe, quando muito mijo, porque se por fora era seco e o corpo duro, imagine então por dentro.
            Fazia tanto sol, mas tanto, e tudo o que tinha era o som das buzinas e das pessoas andando, vendendo, falando. Dos outros. Nem se importava. O que ele queria mesmo era água, e já fazia tempo. E tudo o que via era aquele pixe que já até derretia com o calor e que colava no pé, o que nem incomodava mais, porque já era costume.
            Não queria nome, não queria lápis, mãe, casa, namorada. Queria era beber alguma coisa qualquer que fosse, mas o tempo não era de sorte. Não vinha nem troco nem chuva. E rio, mar, essas coisas então nem existiam. Queria água, ainda uma gotinha que molhasse só seus dentes. Uma gotinha. Que mentira. Queria muita, muita água. Queria muito mais que três, que era até onde ele sabia o tanto que tinha das coisas, mesmo sabendo que na verdade por aí o que tinha era muito mais. E ele não chegava nem no um, o Fulano.
            Água, água, água. Já andava há mais de muito e não via jeito nenhum de beber nada. E foi daí que viu, quase no meio da rua, um buraco de onde um tantinho de água escorria e fazia uma poça perto da sarjeta, e era água de beber. Mas ele não queria a poça, não. Ele quis a fonte. E o Moleque nem pensou quando foi direto pro meio da rua beber a água de onde ela vinha mesmo, e agachou, colou a boca no asfalto quente, ali, no meio da cidade, e enquanto aquele líquido entrava na boca dele a cara queimava no asfalto cinzento, mas ele era muito, muito feliz porque agora a boca já ficava um pouco menos seca e ele queria mais, queria na verdade era ficar ali pra sempre, porque sabia que era muito, muito seco e precisaria de toda aquela água e mais todas as outras que circulavam por algum lugar.
            Do Zé veio, então, um quase-sorriso, quase porque sorrir era coisa que ele não sabia fazer, por falta de prática, vai ver estava era abrindo mais a boca mesmo, só que estava no cimento, naquele lugar cinza onde o sol estava vermelho era pra ele e o verde-quase-azul do farol abriu pros outros, mas ele não viu, o olho verde fechado, ele agachado, a buzina, o barulho, o feio, alguns gritos e, então, o acelerador.
            A água da fonte misturava o monte de vermelho do sol que escorria no chão quente, o corpo duro era agora mais mole e menos corpo que nunca e aí alguém teria que dar um jeito.

O Rio


Uma gota de chuva
A mais, e o ventre grávido
Estremece, da terra.
                           (...)
Vinicius de Moraes, “O rio”


Sentada na soleira da porta, de camisola branca até os joelhos e mangas compridas, com os pés descalços na grama do jardim, ela observa a rua parada, vazia, e o céu indicando chuva num tom azul-escuro acinzentado.
Talvez chova, mas não há vento. Um pé ao lado do outro, unhas bem cortadas, joelhos meio cobertos pelo tecido de algodão, a pele toda branca como a roupa, olhos de um azul muito claro, transparentes, sobrancelhas finas, o couro cabeludo descoberto, cabeça limpa, nua, branca.
Uma caneca de leite puro nas mãos, entre os pequenos dedos. Não faz frio nem calor. Não há ninguém na rua. Não há vento sequer. É como se o mundo estivesse parado e uma garota o observasse ao longe, sem pretensão alguma.
A menina mal se distingue do leite e da camisola, tão clara que é. Menina da lua, quase brilha dentro da escuridão, a cabeça reluzindo quase sozinha. Ali, parada, não julga, não pensa, não toca em nada apenas por tocar.
Como no amanhecer o mundo todo é azul-cinza, a menina é toda branca. Mas uma folha balança e cai e a folha é laranja. Porque o laranja nada tem com o azul ou com o cinza, o céu se fecha e ela, pega de surpresa, não sabe se se fecha ou se se abre. Antes de qualquer decisão, entretanto, uma gota atinge sua cabeça pelada. O frio, o úmido, a lágrima que até então a garota não chorara cai diretamente em sua pele clara, no topo de sua estrutura, e escorre pela nuca, pela coluna, até o meio de suas pernas. Dos pés, a água alcança o chão. E a pequena gota cruza o caminho entre o céu e a terra através de uma pequena e muda mulher.
Num soluço, a menina é de repente água e o mundo também é, tudo é tão transparente e não se sabe se o que se vê é ela ou se é a chuva. O céu chora enquanto a pequena chove. Neblina entre as nuvens cinzas. Sua pele antes imitava a cor do algodão, mas agora já é a camisola que se confunde no corpo, toda molhada, agarrada à garota, escorrendo junto com as gotas que caem sem parar já nem se sabe de onde, de tudo, pois tudo pinga.
Um relâmpago e, por um instante, o que há é apenas luz. Os olhos azuis aos poucos se abrem, as nuvens se afastam, a neblina se dilui, o firmamento olha a terra com mesma cor que os olhos. Da caneca, o leite já se fez água, roupa, corpo, grama, mulher. Os pés descalços se firmam no jardim para lembrar que, por baixo das poças, da grama, da pele, está ali o solo, úmido, agora fertilizado.
A roupa encharcada prende o corpo de mulher e, lutando, a menina consegue se desvencilhar dela, deixando-a solta na soleira da porta. Ainda é  cedo, ela entra na casa com a caneca entre os dedos, a cabeça refletindo as gotas da água, assim como todo o resto de si, espelhando as sete cores em sua branquidão.